Caetano Veloso tem medo da morte, mas menos do que tinha "quando era mais moço e mais narcisista". Aos 66, ele tem "saudades do equilíbrio e da elasticidade do corpo, da força dos cabelos, o jato de urina forte, as ereções firmes, a alegria física da juventude".
Tudo isso o cantor e compositor baiano contou à Folha, numa entrevista a propósito de "Coração Vagabundo", documentário a seu respeito, que chega aos cinemas nesta sexta-feira (24). O diretor do filme, Fernando Grostein de Andrade, diz que sua intenção era realizar "não uma biografia, mas uma passagem pela vida de Caetano".
Com orçamento em torno de R$ 700 mil, considerado baixo pelos parâmetros brasileiros, "Coração Vagabundo" contou com patrocínio de empresas que tiveram incentivo fiscal para realizar o investimento no filme. O incentivo é proporcionado pelas leis federais de incentivo à cultura, das quais quase todos os filmes produzidos no Brasil lançam mão.
Quando fala no tema da subvenção estatal ao fazer artístico, representada sobretudo pela Lei Rouanet, que movimenta cerca de R$ 1 bilhão por ano, Caetano Veloso engrossa o discurso e critica a Folha, certo jornalismo "travestido de investigativo" e a coluna "Mônica Bergamo" nesta entrevista, que preferiu fazer por e-mail.
A polêmica sobre o uso da Lei Rouanet envolvendo o nome de Caetano tem origem na revelação feita pela Folha de que a turnê de seu mais novo álbum, "Zii e Zie", só pôde recorrer a patrocínio com benefício desse mecanismo de renúncia fiscal depois que o ministro da Cultura, Juca Ferreira, interveio em decisão da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC).
A comissão analisa os projetos submetidos à Lei Rouanet e avaliou, originalmente, que a turnê de Caetano era comercialmente viável, podendo prescindir do incentivo. O orçamento era de R$ 2 milhões.
Caetano julga a cobertura da Folha "uma pobreza". Por um lado, ele estrila. Por outro, não se cansa de ter esperança de um dia "melhorar mais", como afirma a seguir.
Folha - Na última vez em que falou à Folha sobre a Lei Rouanet, você deixou clara a sua impressão de não estar sendo devidamente compreendido. Poderia dizer qual é sua opinião sobre o subsídio estatal à produção artística e que avaliação faz do principal mecanismo em prática no Brasil --a Lei Rouanet?
Caetano Veloso - Uma moça entrou na fila de fãs no camarim e, ao chegar junto de mim, pediu para fazer duas perguntas [leia mais sobre o caso aqui ]. De cara, não percebi que era uma jornalista. Quando entendi isso, eu a encaminhei para a assessora de imprensa. Eu tinha uma fila grande para atender. Julguei que a assessora fosse dispensá-la.
Mas ela reapareceu depois, dizendo agora que faria uma pergunta só. Respondi rindo que sim, que fizéssemos logo para nos livrarmos. Era sobre a Lei Rouanet. Não sou bom nesses assuntos e já tinha lido na Folha sugestões de que eu estaria usando dinheiro público indevidamente. Ora, eu não pleiteei nada junto à comissão que se encarrega de julgar esses pedidos. O produtor que me contratou é que pleiteia. Como a comissão não aprovou, sob o pretexto de que uma turnê minha se sustenta sem isso, o jornal achou que havia um caso aí.
Em entrevista à revista "Cult", eu tinha dito que nunca pensava em Lei Rouanet quando tratava de música popular e que só me pronunciei a respeito por causa do cinema: eu havia me manifestado contra o projeto da Ancinav. A música popular, eu dizia, não me parece precisar de incentivos além dos que já tem. Continuo pensando assim (embora pudesse perfeitamente ter mudado de ideia).
Pois bem, a moça não só não fez uma única pergunta como na terceira de umas cinco punha na minha boca frases que eu não disse. Ela tinha sido enviada por Mônica Bergamo, que mantém uma página de fofocas meio "sociais", meio políticas (ou meio de autoridades, meio de celebridades) e o fito era nitidamente me tratar como se eu fosse um misto de Sarney com Dado Dolabella.
Ao fim da quarta resposta, disse-lhe que fosse embora. Ela perguntou triunfante: "Você está me mandando embora?". Respondi que estava e insisti para que fosse logo. Depois a Bergamo foi para o rádio gritar meu nome com aquela voz de taquara rachada, competindo em demagogia e má-fé com [o jornalista Ricardo] Boechat.
Claro que não ouvi isso na hora: uma amiga me mandou por e-mail em MP3. Havia um desejo ridículo de criar um caso em que eu aparecesse como um cara que não merece respeito. Li artigos de outros na Folha (e cartas de leitores) meio eufóricos com isso. Uma pobreza.
Mas um conhecido me escreveu o seguinte: "Não sei se você sabe, mas o papel de imprensa onde eles destilam o veneninho goza de 100% de isenção fiscal. Será que os próprios repórteres sabem disto? Estamos falando de dezenas e dezenas de milhões de reais em incentivos fiscais, não só federais (0% de PIS, Cofins, imposto de importação etc...) mas também estaduais, já que papel de imprensa também não paga um centavo de ICMS. E a isenção é dada a todo mundo, não só ao jornal do AfroReggae mas também a enormes corporações como a Folha, cujo faturamento está na casa do bilhão. A isenção de impostos do papel de imprensa é provavelmente a forma mais antiga de incentivo fiscal à cultura no Brasil. Acho que vem dos anos 50. Não sou contra ela. Ao contrário, sou muito a favor, tanto para os jornais quanto para os teus shows. Só sou contra a hipocrisiazinha vingativa --e boba-- travestida de jornalismo investigativo."
É um aspecto a ser pensado por mim e por você, Silvana. O ministro da cultura disse que achava desequilibrada a decisão da comissão (no meu caso como no de Bethânia e no de Fernanda Montenegro). Se não fosse assim, o produtor da minha turnê que se virasse para fazê-la seguir ou a suspendesse. Eu não ligo a mínima. O ministro quer mudar a lei. Seja como for, hoje todos a usam.
Mas eu não peço isso a ninguém. Conversei depois com Maurício Pessoa (o produtor contratante) e ele me disse que, sem isso, não teríamos espetáculos como o de Juazeiro do Norte, em que os ingressos custavam R$ 30. Mas eu não faço essas contas. Por mim, os ingressos todos dos meus shows deveriam ser menos caros porque o público que tem muito dinheiro é, em geral, muito careta --e eu não sou careta. Muitas pessoas que se identificam com o que faço não podem, em certas cidades, ir ver o meu show. Quem quer que me contrate deverá, contando ou não com isenção fiscal, tentar resolver essa questão, que me interessa. O resto --os casos jornalísticos de excitação por tentar destruir reputações-- não me interessa.
Folha - Você menciona sua "obra comportamental" em seu blog como parte do conjunto de sua carreira e de seu impacto na música popular brasileira. Você situa a cena de nudez de "Coração Vagabundo" como parte dessa "obra comportamental"? Se sim, ela não seria demasiadamente pudica? A propósito desse tema, você poderia dar sua opinião sobre a análise do ator Pedro Cardoso de que a nudez no cinema e na TV deixou de ser um ato de transgressão e se tornou uma expressão subliminar de pornografia para vender produtos ruins?
Caetano Veloso - Não decidi posar nu para o filme. Foi um acaso que o diretor achou engraçado mas pensou que a produtora fosse querer cortar. Ela não quis cortar. Eu nem opinei. Não ligo. Não acho nem pudico nem safado aquilo. Há uma foto em que apareço nu, feita pela Vânia Toledo, que pode se ver num número recente da revista TPM. É um nu muito mais nu do que esse do filme.
Quando vi "Hair", em 1969, em Londres, as pessoas ficarem nuas em cena era um acontecimento. Depois passou a ser mais comum. Mesmo assim, nunca deixou de provocar algum nervosismo. Liga-se a nudez ao sexo. E sexo não é uma coisa entre as outras. Um ginecologista não deixa de achar o corpo da mulher excitante só porque vê dezenas de mulheres nuas todos os dias.
As coisas que Pedro Cardoso disse têm fundamento. Lembro de Marcuse falando em dessublimação repressiva. Quando eu era garoto detestava a revista "Playboy". Aquilo não ajudou na construção da minha heterossexualidade. Mas há também algo com que não me identifico no papo de Pedro: parece que há um desejo de voltar atrás, uma reverência por um suposto passado mais moral, mais saudável e mais justo. Eu não acredito nisso.
Folha - Em sua passagem mais introspectiva no filme, você diz que a melancolia daquele momento tem a ver com coisas "da vida íntima, das quais não se fala". Pensei imediatamente em canções como "O Quereres", "Branquinha", "Não Enche", em que temos a impressão de ter acesso à sua intimidade afetiva. Pensei ainda até que ponto seria uma construção deliberada (e talvez distante da verdade mais íntima) a imagem pública que se construiu de sua relação com Paula Lavigne, a quem se atribui o papel de uma mulher dominadora e empresária sagaz e implacável. Você estabelece um limite de exposição da intimidade a que se permite em sua obra --tanto a artística quanto a comportamental? Qual é esse limite?
Caetano - "Branquinha" é uma canção conscientemente feita sobre e para Paulinha Lavigne. "O Quereres" foi conscientemente escrita sobre e para Cristina Mandarino. 'Não Enche" foi escrita contra as mulheres que prendem os homens. Paulinha era minha mulher na época, e, como respondi a um entrevistador na época, é claro que a música era, portanto, primeiramente para ela.
Mas a imagem pública que possa haver do que foi nosso casamento nunca pode ter nada a ver com o que se passava na intimidade. Paulinha é muito generosa, inteligente e engraçada. Nosso vínculo tinha aspectos que só eu e ela sabemos.
Não preciso traçar uma linha nítida entre o que se expõe e o que fica escondido. Muito do que é íntimo não dá para expor: a gente não tem nem como comunicar - e as pessoas não entenderiam. Mas lembro de que, quando escrevi "Verdade Tropical", tomei a decisão de revelar o máximo sobre mim sem entregar nada secreto ou delicado de pessoas com quem me relacionei a partir da infância.
Folha - Quando afirma que só viveria em Madri ou em Nova York, se tivesse que morar fora do Brasil, você acrescenta que essas são as cidades que os terroristas atacaram. Que relação exatamente você fez entre a sua escolha por essas cidades e o fato de terem sido alvo do terrorismo. Por que excluiu da lista Londres, em que você já viveu exilado e que também sofreu ataques terroristas recentes?
Caetano - Londres já estava fora da lista pois não era uma das cidades que eu escolheria para morar. O fato de as minhas duas escolhidas terem sido escolhidas também pelos terroristas para serem atacadas me veio à cabeça porque os fatos eram ainda recentes e porque comentando isso eu estava dando mostras de quanto me magoaram aqueles ataques.
Outro dia vi, sozinho no cinema, "Jean Charles". Chorei muito. Em primeiro lugar, Londres aparece linda como eu nunca achei: sente-se que o diretor (como seu personagem) experimenta deslumbramento diante de Londres. A roda gigante parece que é mais bonita do que a Torre Eiffel. Eu nunca senti isso em Londres.
Noto que a cidade hoje tem muito mais essas características parisienses de cidade central do mundo do que quando eu morei lá, mas não chega a me parecer um lugar uno e grandioso. Amo em Londres as virtudes algo melancólicas dos detalhes de civilidade relaxada: os bancos dos parques, os tipos dos letreiros, as marcas brancas no preto do asfalto. Quando eu morava lá não havia imigrantes brasileiros do tipo que há hoje. Tudo o que se passa entre a cidade e os personagens de Selton Mello, Vanessa Giacomo e Luiz Miranda me emocionou muito fortemente.
Folha - Você fala da perspectiva de seu enterro. Não ficou claro para mim se você tem medo da morte ou de morrer. Tem?
Caetano Veloso - Tenho medo das duas coisas. Mas tinha mais quando era mais moço e mais narcisista. Não lembro de ter falado sobre isso no filme. Falei de enterro só porque lembrei que antes queria ser cremado mas agora já pensava em ser enterrado em Santo Amaro. Para ser sincero, neste momento não penso nem uma coisa nem outra. Aquilo foi ali no Japão.
Folha - Em dado momento do filme, você revela preocupação com a voz. Poderia comentar como repercutiu em você o processo de perda vocal de Gilberto Gil? Considerando que uma das coisas que o filme revela é sua recusa à maquiagem para a TV, por receio de "ficar com cara de político babaca", gostaria de saber qual foi o impacto da decisão de Gil de assumir o Ministério da Cultura na relação de vocês dois.
Caetano - Eu gostaria de ter podido persuadir Gil a poupar mais a garganta. Mas, embora a voz brilhante e extensa que ele tinha fosse linda, a força de Gil está na musicalidade --que se expressa no modo como ele toca o violão, como ele intui a rítmica de uma frase, como ele revela a consciência imediata das relações entre as notas. Isso não depende de voz limpa. Quanto ao ministério, Gil me chamou para conversar quando recebeu o convite de Lula. Fui muito cuidadoso com ele, que estava honrado e excitado com a oportunidade, mas terminei por aconselhá-lo a não aceitar. É sabido que eu lhe disse: "Lula já é um símbolo: você vai ser o Lula do Lula". Mas ele queria aceitar. E no fim das contas eu achei que ele foi mesmo um Lula do Lula, só que isso, dadas as revelações da personalidade pragmática do político Lula, não teve o caráter negativo que eu temia. Gil trouxe visibilidade ao ministério da cultura, alargou e aprofundou a visibilidade do governo Lula (um governo estrela mundial), teve seu nome e sua gestão citados no livro do Lessig, o criador do Creative Commons, abriu o debate sobre direitos na era da reprodutibilidade digital e da difusão virtual. E já deixou o cargo.
Folha - Se a velhice traz a conclusão de que "o pior já passou", como diz no filme, o que foi o seu pior?
Caetano - Não é bem uma conclusão. É a constatação de que não se pode pôr tudo na conta da velhice. Alguns podem viver o pior de suas vidas aos 17, ou aos 35, ou aos 42, e atravessar a velhice com alegria e paz.
No filme, não falava de mim. Sou um cara que tem saudades da juventude --não do tempo em que fui jovem, mas da juventude em si, do equilíbrio e da elasticidade do corpo, da força dos cabelos, o jato de urina forte, as ereções firmes, a alegria física da juventude.
Mas não sou burro e sei que não é impossível alguém ter, no cômputo geral, mais alegria na velhice. Reconheço que há vários aspectos da minha vida que melhoraram --e ainda desejo melhorar mais. Algumas coisas, no entanto, não podem deixar de decair com a idade.
Folha - Você fala no filme de seu enterro. Teme a morte ou morrer?
Caetano - Tenho medo das duas coisas. Mas tinha mais quando era mais moço e mais narcisista.
Folha - Numa cena, você se preocupa com sua voz. Como lidou com a perda vocal de Gilberto Gil? O filme revela sua recusa à maquiagem para a TV, por receio de "ficar com cara de político babaca". Que impacto teve em sua relação com Gil a decisão dele de ser ministro da Cultura?
Caetano - Gostaria de ter podido persuadir Gil a poupar mais a garganta. Embora a voz brilhante e extensa que ele tinha fosse linda, a força de Gil está na musicalidade, no modo como toca o violão, como intui a rítmica de uma frase, como revela a consciência imediata das relações entre as notas. Isso não depende de voz limpa.
Quanto ao ministério, é sabido que eu lhe disse: "Lula já é um símbolo: você será o Lula do Lula". No fim, achei que ele foi mesmo um Lula do Lula. Só que isso, dadas as revelações da personalidade pragmática do político Lula, não teve o caráter negativo que eu temia.
Folha - Em "Coração Vagabundo" você diz que "a pobreza termina resultando espiritualmente". Trata-se de um pensamento religioso de alguém que se diz antirreligioso?
Caetano - Não. Essa nossa carne cuja existência percebemos é um fato espiritual o tempo todo. Já fui antirreligioso; depois, fui contra essa posição, que me parecia uma repressão da religiosidade. Passei a ser mais programaticamente antirreligioso, porque odeio hipocrisia e temo o fanatismo.
Folha - Em cena no Japão você fala da consciência de ser "racialmente suspeito'; em NY, diz-se distinto de quem nasceu acreditando estar no mundo. Hoje sente-se mais estrangeiro no lugar do que no momento?
Caetano - Sempre estrangeiro. Sou um brasileiro brasileirista. Gosto de São Paulo porque é diferente do Brasil de Vargas e da Rádio Nacional. Mas odeio a cultura do desprezo a tudo o que ganhou ou ganha corpo no Brasil (inclusive Vargas e Rádio Nacional). Outro dia li um idiota desqualificando meu canto em "Zii e Zie" porque supostamente pareceria com Cauby Peixoto e Ângela Maria. Mas eu penso que os EUA só se salvarão quando entenderem Chico Buarque e Lulu Santos.
Tudo isso o cantor e compositor baiano contou à Folha, numa entrevista a propósito de "Coração Vagabundo", documentário a seu respeito, que chega aos cinemas nesta sexta-feira (24). O diretor do filme, Fernando Grostein de Andrade, diz que sua intenção era realizar "não uma biografia, mas uma passagem pela vida de Caetano".
Com orçamento em torno de R$ 700 mil, considerado baixo pelos parâmetros brasileiros, "Coração Vagabundo" contou com patrocínio de empresas que tiveram incentivo fiscal para realizar o investimento no filme. O incentivo é proporcionado pelas leis federais de incentivo à cultura, das quais quase todos os filmes produzidos no Brasil lançam mão.
Quando fala no tema da subvenção estatal ao fazer artístico, representada sobretudo pela Lei Rouanet, que movimenta cerca de R$ 1 bilhão por ano, Caetano Veloso engrossa o discurso e critica a Folha, certo jornalismo "travestido de investigativo" e a coluna "Mônica Bergamo" nesta entrevista, que preferiu fazer por e-mail.
A polêmica sobre o uso da Lei Rouanet envolvendo o nome de Caetano tem origem na revelação feita pela Folha de que a turnê de seu mais novo álbum, "Zii e Zie", só pôde recorrer a patrocínio com benefício desse mecanismo de renúncia fiscal depois que o ministro da Cultura, Juca Ferreira, interveio em decisão da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC).
A comissão analisa os projetos submetidos à Lei Rouanet e avaliou, originalmente, que a turnê de Caetano era comercialmente viável, podendo prescindir do incentivo. O orçamento era de R$ 2 milhões.
Caetano julga a cobertura da Folha "uma pobreza". Por um lado, ele estrila. Por outro, não se cansa de ter esperança de um dia "melhorar mais", como afirma a seguir.
Folha - Na última vez em que falou à Folha sobre a Lei Rouanet, você deixou clara a sua impressão de não estar sendo devidamente compreendido. Poderia dizer qual é sua opinião sobre o subsídio estatal à produção artística e que avaliação faz do principal mecanismo em prática no Brasil --a Lei Rouanet?
Caetano Veloso - Uma moça entrou na fila de fãs no camarim e, ao chegar junto de mim, pediu para fazer duas perguntas [leia mais sobre o caso aqui ]. De cara, não percebi que era uma jornalista. Quando entendi isso, eu a encaminhei para a assessora de imprensa. Eu tinha uma fila grande para atender. Julguei que a assessora fosse dispensá-la.
Mas ela reapareceu depois, dizendo agora que faria uma pergunta só. Respondi rindo que sim, que fizéssemos logo para nos livrarmos. Era sobre a Lei Rouanet. Não sou bom nesses assuntos e já tinha lido na Folha sugestões de que eu estaria usando dinheiro público indevidamente. Ora, eu não pleiteei nada junto à comissão que se encarrega de julgar esses pedidos. O produtor que me contratou é que pleiteia. Como a comissão não aprovou, sob o pretexto de que uma turnê minha se sustenta sem isso, o jornal achou que havia um caso aí.
Em entrevista à revista "Cult", eu tinha dito que nunca pensava em Lei Rouanet quando tratava de música popular e que só me pronunciei a respeito por causa do cinema: eu havia me manifestado contra o projeto da Ancinav. A música popular, eu dizia, não me parece precisar de incentivos além dos que já tem. Continuo pensando assim (embora pudesse perfeitamente ter mudado de ideia).
Pois bem, a moça não só não fez uma única pergunta como na terceira de umas cinco punha na minha boca frases que eu não disse. Ela tinha sido enviada por Mônica Bergamo, que mantém uma página de fofocas meio "sociais", meio políticas (ou meio de autoridades, meio de celebridades) e o fito era nitidamente me tratar como se eu fosse um misto de Sarney com Dado Dolabella.
Ao fim da quarta resposta, disse-lhe que fosse embora. Ela perguntou triunfante: "Você está me mandando embora?". Respondi que estava e insisti para que fosse logo. Depois a Bergamo foi para o rádio gritar meu nome com aquela voz de taquara rachada, competindo em demagogia e má-fé com [o jornalista Ricardo] Boechat.
Claro que não ouvi isso na hora: uma amiga me mandou por e-mail em MP3. Havia um desejo ridículo de criar um caso em que eu aparecesse como um cara que não merece respeito. Li artigos de outros na Folha (e cartas de leitores) meio eufóricos com isso. Uma pobreza.
Mas um conhecido me escreveu o seguinte: "Não sei se você sabe, mas o papel de imprensa onde eles destilam o veneninho goza de 100% de isenção fiscal. Será que os próprios repórteres sabem disto? Estamos falando de dezenas e dezenas de milhões de reais em incentivos fiscais, não só federais (0% de PIS, Cofins, imposto de importação etc...) mas também estaduais, já que papel de imprensa também não paga um centavo de ICMS. E a isenção é dada a todo mundo, não só ao jornal do AfroReggae mas também a enormes corporações como a Folha, cujo faturamento está na casa do bilhão. A isenção de impostos do papel de imprensa é provavelmente a forma mais antiga de incentivo fiscal à cultura no Brasil. Acho que vem dos anos 50. Não sou contra ela. Ao contrário, sou muito a favor, tanto para os jornais quanto para os teus shows. Só sou contra a hipocrisiazinha vingativa --e boba-- travestida de jornalismo investigativo."
É um aspecto a ser pensado por mim e por você, Silvana. O ministro da cultura disse que achava desequilibrada a decisão da comissão (no meu caso como no de Bethânia e no de Fernanda Montenegro). Se não fosse assim, o produtor da minha turnê que se virasse para fazê-la seguir ou a suspendesse. Eu não ligo a mínima. O ministro quer mudar a lei. Seja como for, hoje todos a usam.
Mas eu não peço isso a ninguém. Conversei depois com Maurício Pessoa (o produtor contratante) e ele me disse que, sem isso, não teríamos espetáculos como o de Juazeiro do Norte, em que os ingressos custavam R$ 30. Mas eu não faço essas contas. Por mim, os ingressos todos dos meus shows deveriam ser menos caros porque o público que tem muito dinheiro é, em geral, muito careta --e eu não sou careta. Muitas pessoas que se identificam com o que faço não podem, em certas cidades, ir ver o meu show. Quem quer que me contrate deverá, contando ou não com isenção fiscal, tentar resolver essa questão, que me interessa. O resto --os casos jornalísticos de excitação por tentar destruir reputações-- não me interessa.
Folha - Você menciona sua "obra comportamental" em seu blog como parte do conjunto de sua carreira e de seu impacto na música popular brasileira. Você situa a cena de nudez de "Coração Vagabundo" como parte dessa "obra comportamental"? Se sim, ela não seria demasiadamente pudica? A propósito desse tema, você poderia dar sua opinião sobre a análise do ator Pedro Cardoso de que a nudez no cinema e na TV deixou de ser um ato de transgressão e se tornou uma expressão subliminar de pornografia para vender produtos ruins?
Caetano Veloso - Não decidi posar nu para o filme. Foi um acaso que o diretor achou engraçado mas pensou que a produtora fosse querer cortar. Ela não quis cortar. Eu nem opinei. Não ligo. Não acho nem pudico nem safado aquilo. Há uma foto em que apareço nu, feita pela Vânia Toledo, que pode se ver num número recente da revista TPM. É um nu muito mais nu do que esse do filme.
Quando vi "Hair", em 1969, em Londres, as pessoas ficarem nuas em cena era um acontecimento. Depois passou a ser mais comum. Mesmo assim, nunca deixou de provocar algum nervosismo. Liga-se a nudez ao sexo. E sexo não é uma coisa entre as outras. Um ginecologista não deixa de achar o corpo da mulher excitante só porque vê dezenas de mulheres nuas todos os dias.
As coisas que Pedro Cardoso disse têm fundamento. Lembro de Marcuse falando em dessublimação repressiva. Quando eu era garoto detestava a revista "Playboy". Aquilo não ajudou na construção da minha heterossexualidade. Mas há também algo com que não me identifico no papo de Pedro: parece que há um desejo de voltar atrás, uma reverência por um suposto passado mais moral, mais saudável e mais justo. Eu não acredito nisso.
Folha - Em sua passagem mais introspectiva no filme, você diz que a melancolia daquele momento tem a ver com coisas "da vida íntima, das quais não se fala". Pensei imediatamente em canções como "O Quereres", "Branquinha", "Não Enche", em que temos a impressão de ter acesso à sua intimidade afetiva. Pensei ainda até que ponto seria uma construção deliberada (e talvez distante da verdade mais íntima) a imagem pública que se construiu de sua relação com Paula Lavigne, a quem se atribui o papel de uma mulher dominadora e empresária sagaz e implacável. Você estabelece um limite de exposição da intimidade a que se permite em sua obra --tanto a artística quanto a comportamental? Qual é esse limite?
Caetano - "Branquinha" é uma canção conscientemente feita sobre e para Paulinha Lavigne. "O Quereres" foi conscientemente escrita sobre e para Cristina Mandarino. 'Não Enche" foi escrita contra as mulheres que prendem os homens. Paulinha era minha mulher na época, e, como respondi a um entrevistador na época, é claro que a música era, portanto, primeiramente para ela.
Mas a imagem pública que possa haver do que foi nosso casamento nunca pode ter nada a ver com o que se passava na intimidade. Paulinha é muito generosa, inteligente e engraçada. Nosso vínculo tinha aspectos que só eu e ela sabemos.
Não preciso traçar uma linha nítida entre o que se expõe e o que fica escondido. Muito do que é íntimo não dá para expor: a gente não tem nem como comunicar - e as pessoas não entenderiam. Mas lembro de que, quando escrevi "Verdade Tropical", tomei a decisão de revelar o máximo sobre mim sem entregar nada secreto ou delicado de pessoas com quem me relacionei a partir da infância.
Folha - Quando afirma que só viveria em Madri ou em Nova York, se tivesse que morar fora do Brasil, você acrescenta que essas são as cidades que os terroristas atacaram. Que relação exatamente você fez entre a sua escolha por essas cidades e o fato de terem sido alvo do terrorismo. Por que excluiu da lista Londres, em que você já viveu exilado e que também sofreu ataques terroristas recentes?
Caetano - Londres já estava fora da lista pois não era uma das cidades que eu escolheria para morar. O fato de as minhas duas escolhidas terem sido escolhidas também pelos terroristas para serem atacadas me veio à cabeça porque os fatos eram ainda recentes e porque comentando isso eu estava dando mostras de quanto me magoaram aqueles ataques.
Outro dia vi, sozinho no cinema, "Jean Charles". Chorei muito. Em primeiro lugar, Londres aparece linda como eu nunca achei: sente-se que o diretor (como seu personagem) experimenta deslumbramento diante de Londres. A roda gigante parece que é mais bonita do que a Torre Eiffel. Eu nunca senti isso em Londres.
Noto que a cidade hoje tem muito mais essas características parisienses de cidade central do mundo do que quando eu morei lá, mas não chega a me parecer um lugar uno e grandioso. Amo em Londres as virtudes algo melancólicas dos detalhes de civilidade relaxada: os bancos dos parques, os tipos dos letreiros, as marcas brancas no preto do asfalto. Quando eu morava lá não havia imigrantes brasileiros do tipo que há hoje. Tudo o que se passa entre a cidade e os personagens de Selton Mello, Vanessa Giacomo e Luiz Miranda me emocionou muito fortemente.
Folha - Você fala da perspectiva de seu enterro. Não ficou claro para mim se você tem medo da morte ou de morrer. Tem?
Caetano Veloso - Tenho medo das duas coisas. Mas tinha mais quando era mais moço e mais narcisista. Não lembro de ter falado sobre isso no filme. Falei de enterro só porque lembrei que antes queria ser cremado mas agora já pensava em ser enterrado em Santo Amaro. Para ser sincero, neste momento não penso nem uma coisa nem outra. Aquilo foi ali no Japão.
Folha - Em dado momento do filme, você revela preocupação com a voz. Poderia comentar como repercutiu em você o processo de perda vocal de Gilberto Gil? Considerando que uma das coisas que o filme revela é sua recusa à maquiagem para a TV, por receio de "ficar com cara de político babaca", gostaria de saber qual foi o impacto da decisão de Gil de assumir o Ministério da Cultura na relação de vocês dois.
Caetano - Eu gostaria de ter podido persuadir Gil a poupar mais a garganta. Mas, embora a voz brilhante e extensa que ele tinha fosse linda, a força de Gil está na musicalidade --que se expressa no modo como ele toca o violão, como ele intui a rítmica de uma frase, como ele revela a consciência imediata das relações entre as notas. Isso não depende de voz limpa. Quanto ao ministério, Gil me chamou para conversar quando recebeu o convite de Lula. Fui muito cuidadoso com ele, que estava honrado e excitado com a oportunidade, mas terminei por aconselhá-lo a não aceitar. É sabido que eu lhe disse: "Lula já é um símbolo: você vai ser o Lula do Lula". Mas ele queria aceitar. E no fim das contas eu achei que ele foi mesmo um Lula do Lula, só que isso, dadas as revelações da personalidade pragmática do político Lula, não teve o caráter negativo que eu temia. Gil trouxe visibilidade ao ministério da cultura, alargou e aprofundou a visibilidade do governo Lula (um governo estrela mundial), teve seu nome e sua gestão citados no livro do Lessig, o criador do Creative Commons, abriu o debate sobre direitos na era da reprodutibilidade digital e da difusão virtual. E já deixou o cargo.
Folha - Se a velhice traz a conclusão de que "o pior já passou", como diz no filme, o que foi o seu pior?
Caetano - Não é bem uma conclusão. É a constatação de que não se pode pôr tudo na conta da velhice. Alguns podem viver o pior de suas vidas aos 17, ou aos 35, ou aos 42, e atravessar a velhice com alegria e paz.
No filme, não falava de mim. Sou um cara que tem saudades da juventude --não do tempo em que fui jovem, mas da juventude em si, do equilíbrio e da elasticidade do corpo, da força dos cabelos, o jato de urina forte, as ereções firmes, a alegria física da juventude.
Mas não sou burro e sei que não é impossível alguém ter, no cômputo geral, mais alegria na velhice. Reconheço que há vários aspectos da minha vida que melhoraram --e ainda desejo melhorar mais. Algumas coisas, no entanto, não podem deixar de decair com a idade.
Folha - Você fala no filme de seu enterro. Teme a morte ou morrer?
Caetano - Tenho medo das duas coisas. Mas tinha mais quando era mais moço e mais narcisista.
Folha - Numa cena, você se preocupa com sua voz. Como lidou com a perda vocal de Gilberto Gil? O filme revela sua recusa à maquiagem para a TV, por receio de "ficar com cara de político babaca". Que impacto teve em sua relação com Gil a decisão dele de ser ministro da Cultura?
Caetano - Gostaria de ter podido persuadir Gil a poupar mais a garganta. Embora a voz brilhante e extensa que ele tinha fosse linda, a força de Gil está na musicalidade, no modo como toca o violão, como intui a rítmica de uma frase, como revela a consciência imediata das relações entre as notas. Isso não depende de voz limpa.
Quanto ao ministério, é sabido que eu lhe disse: "Lula já é um símbolo: você será o Lula do Lula". No fim, achei que ele foi mesmo um Lula do Lula. Só que isso, dadas as revelações da personalidade pragmática do político Lula, não teve o caráter negativo que eu temia.
Folha - Em "Coração Vagabundo" você diz que "a pobreza termina resultando espiritualmente". Trata-se de um pensamento religioso de alguém que se diz antirreligioso?
Caetano - Não. Essa nossa carne cuja existência percebemos é um fato espiritual o tempo todo. Já fui antirreligioso; depois, fui contra essa posição, que me parecia uma repressão da religiosidade. Passei a ser mais programaticamente antirreligioso, porque odeio hipocrisia e temo o fanatismo.
Folha - Em cena no Japão você fala da consciência de ser "racialmente suspeito'; em NY, diz-se distinto de quem nasceu acreditando estar no mundo. Hoje sente-se mais estrangeiro no lugar do que no momento?
Caetano - Sempre estrangeiro. Sou um brasileiro brasileirista. Gosto de São Paulo porque é diferente do Brasil de Vargas e da Rádio Nacional. Mas odeio a cultura do desprezo a tudo o que ganhou ou ganha corpo no Brasil (inclusive Vargas e Rádio Nacional). Outro dia li um idiota desqualificando meu canto em "Zii e Zie" porque supostamente pareceria com Cauby Peixoto e Ângela Maria. Mas eu penso que os EUA só se salvarão quando entenderem Chico Buarque e Lulu Santos.
Fonte: Folha de São Paulo
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